segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Carnaval de Salvador: “apartheid” e seletividade em uma ilha de brancos cercada por uma corda de negros.


Ignoro o critério dos órgãos responsáveis pelo Carnaval de Salvador, para estabelecer o percurso dos Blocos, Trios Alternativos, Independentes ou qualquer outro nome dessas parafernálias musicais. Até que me esforcei por saber, junto a um órgão de turismo, mas não tive êxito na resposta. Certo é que alguns/algumas dos “deuses/deusas” que puxam essas “corporações” não passam pelos tradicionais percursos da Avenida Sete, Piedade, São Pedro, Praça Castro Alves, chamado Circuito Campo Grande (ou Osmar), que prefiro designar por “Circuito Senzala”, tal é a manifesta concentração de nichos de pobreza que ali se aglutinam. Muitos desse reis/rainhas do Axé, Pagode, desfilam apenas pelo trajeto Barra/Ondina, (ou Circuito Dodô), que denomino “Circuito Casa Grande”, em razão do grupo de elite que prefere curtir o Carnaval com “segurança”, longe da “mistura” do centro da cidade.
Por escolha política, estou no “Circuito Senzala” e, do alto do quinto andar de um prédio em frente ao velho Jardim da Piedade, cercado por grades de ferro escondidas atrás de muralhas de madeira, posso enxergar com maior objetividade o Carnaval declamado internacionalmente por ser a mais intensa expressão de alegria (e com razão) e de respeito à diversidade étnica e cultural que marca nosso povo (o que não é verdadeiro).  Lamentavelmente essa festa, em nossa capital, vem resgatando a figura de um Navio Negreiro, dessa feita, sofisticado e de elevada tecnologia. Grilhões de antigamente agora são cordas que negros e negras arrastam, de mãos enluvadas, para dar proteção à grande massa de brancos e brancas que se torce (nem sempre) em frente, ao lado e no rastro dos possantes veículos que transportam “deuses/deusas” (às vezes negros e negras) do Axé, do Pagode e de não sei mais o que.
No podium simbolizado pelos Trios Elétricos, o encanto e a fama de rostos globais, convidados especialmente para gozo e delírio da maioria pobre, apinhada e comprimida ao longo do espaço público legal (mas ilegitimamente) apropriado pelas elites que desfilam nas grandes Empresas/Blocos que dominam o Mercado Carnavalesco de Salvador, produzindo um espetáculo destinado principalmente aos ricos e aos turistas que ocupam a cidade durante a folia momesca.
Enquanto arde minha repulsa pela expropriação dos sítios de divertimento em Salvador, continuo a espiar o rito de passagem dos Trios. Em um deles, sem bloco, três jovens negras reverenciam Carmem Miranda. Fico à espera dos gritos dos “espremidos” na Praça Piedade. Nada acontece. O silêncio e a indiferença do público deixam claro que as vocalistas, não obstante afortunadas na escolha das vestes e do repertório, não eram midiatizadas, logo, não conseguiam animar a platéia.
Outros Trios passam. De repente, acontece a explosão. A Praça Piedade enlouquece, mobilizada por uma das “deusas” douradas que comandam o espetáculo do Carnaval da Bahia. E outros “deuses/deusas” se sucedem, enquanto também se aglomeram os “excluídos da corda”, pulando entre as barreiras formadas pelos edifícios, pelo jardim e pelas “correntes vivas” que circulam os Blocos. Não só, o muro se fortifica por fileiras de policiais militares, que parecem ter olhos e ouvidos apenas para os negros fora da corda, os quais, em todos os momentos que pude presenciar, eram os únicos abordados.
Carnaval de Salvador é isso aí: uma ilha de brancos cercada por uma corda de negros e negras. Foi a única resposta que consegui formular diante da indagação que me fez uma paulista sobre essa festa já tão deformada na sua feição democrática. Um simples olhar sobre os Blocos/Empresas Carnavalescos é o bastante para consolidar essa afirmativa que dialoga com uma realidade oposta aos dias de Carnaval, único tempo em que a minoria branca e rica predomina sobre uma cidade histórica e matematicamente negra e pobre. Desse modo, os “habitantes” ocasionais de quase todas essas “cidades dos Blocos” escancaram um violento e insuperável contraste com a população negra dos cárceres, das invasões, das periferias, das favelas, dos quilombos, dos Sem Teto, dos Sem Terra.
Por todo o período de Carnaval, negro é o tom da corda, dos ambulantes que circulam aos milhares. É a cor do povo “Fora dos Blocos”, olhando das calçadas, pulsando ao som de altíssimos equipamentos que amplificam à exaustão as vozes dos “mitos” da passarela e aplaudindo os desfilantes dos Blocos, talvez, na sua expressiva maioria, descendências dos colonizadores de terras no passado, e agora, dos espaços antes livres para brincar e da alegria que vibra a cada passagem dos “latifundiários da folia”.
De fato, no Carnaval de Salvador, a rua, a avenida, a praça se constituem o grande domínio desses novos sujeitos sociais que são os empresários donos dos Blocos e seus associados. É verdade que algum recinto sobra para afrodescendentes, por sua inigualável capacidade vocal e instrumental. Mas por vezes questiono se essa aclamada e fascinante musicalidade não termina sendo uma estratégia excludente a partir de um discurso de inclusão social. Isso significa a urgência em se refletir sobre a utilização, pelas elites, do espaço da música e dos tambores como um grande quilombo, distanciando o potencial de negros e negras das “catedrais cristalizadas” que são as Universidades e de outros locus de poder.
Nesse contexto, chama atenção a quem se dispõe a fazer uma leitura crítica do Carnaval de Salvador, o fato de que em nenhum outro momento a luta de classes se revela com tamanho vigor em nossa cidade. As ruas, praças e avenidas que deveriam pertencer ao povo, seu titular legítimo, se acanham para ceder lugar a alguns privilegiados, a exemplo de atores, atrizes, autoridades e outros figurantes da nobreza daqui e de fora do país que se confinam em luxuosos camarotes garantidos pelos “deuses/deusas” do Carnaval ou explorados por capitalistas do Império de Momo, que vendem o espaço público a quem possa dispor do valor cobrado. O mais censurável é a restrição desses espaços, acessíveis apenas à nata esguia, branca e economicamente estável que desfila rigorosamente vestida de “abadá”, figurino de criação baiana comercializada a preços que humilham a quem ganha um salário e envergonham a tantos quantos militam na trincheira da busca pela destituição das desigualdades e pela construção de uma sociedade onde todos e todas, indistintamente, possam se “empoderar” da exultação de “ser pessoa”, e, nesse sentido, de “ser pessoa dentro de todo o espaço da alegria” do Carnaval de Salvador.

Marilia Lomanto Veloso[1]
Artigo escrito em 24 de fevereiro de 2009.


[1]Marilia Lomanto Veloso é Doutora em Direito pela PUC/SP, Professora de Direito da UEFS, Ex Promotora de Justiça da Bahia, Membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia, Presidente do JusPopuli/Escritório de Direitos Humanos.




  

domingo, 18 de setembro de 2011

Conclamação ao Curso de Direito da UEFS

Estamos vivenciando mais um momento político especial na UEFS. Um tempo que exige reflexão sobre a sociedade que queremos ajudar a construir, sobre o papel da Universidade pública no contexto dessa construção e sobre quais protagonistas de fato estão sintonizados com a utopia de curso que ousamos sonhar sem nunca perder de vista que o horizonte que atingimos é uma linha tênue e  impermanente, que  impõe vigilância, atitude e luta conjunta para romper manhãs e varar noites em busca de desenhar novas fronteiras que tornem possível manter a dinâmica e a vitalidade de um Projeto de gestão superior que está dando certo e que, por isso, precisa de nossa energia pessoal e coletiva para continuar.
Esse é um momento de escolha que pertence a todos e todas nós, que fazemos o Curso de Direito acontecer, porque estamos na essência de seu projeto político pedagógico. Nós, professores, professoras, alunos, alunas, funcionários, funcionárias, estagiários, estagiárias, que tentamos a todo instante buscar a consolidação do Curso. Mas também pertence aos que tornam possível sua existência, porque abrigam nossas demandas, cuidando, enquanto gestão, de viabilizar e disponibilizar as estruturas necessárias à ocupação dos espaços sobre os quais projetamos nosso compromisso acadêmico, ético, político e social.
Mas também pertence aos que transitam pelo Colegiado de Direito para criar um ambiente agradável, receptivo, limpo, iluminado, porque trazem o cheirinho do café exalando ao longo da noite, porque limpam a poeirinha do ir e vir dos sapatos que entram e saem do Colegiado trazendo as histórias de todos os lugares e trincheiras por onde passamos todos e todas para chegar a este lugar público e plural que é a UEFS. E nesse espaço de diversidade a nossa escolha se veste de todas as cores e se investe de todos os saberes, tanto os que acumulamos nas salas das academias como os que experimentamos nas práticas sociais que movimentam a história de cada um, de cada uma e de todos e todas nós aqui e fora dos muros da UEFS.
Do lugar de onde falamos acreditamos ter legitimidade conquistada nos embates travados em outros tempos para manter vivo o projeto do Curso de Direito. Porque esgrimimos juntos, professores, professoras, alunos, alunas, outros e outras companheiros e companheiras da comunidade UEFS. E foi assim, no coletivo, abraçados à Coordenação do Curso de Direito, que saímos fortes e vitoriosos da luta de então, abrindo espaços para a realização de 13 Concursos Públicos viabilizando a continuidade do Curso que tanto respeito vem merecendo da Comunidade acadêmica no País, alinhando-se, assim, aos demais Cursos que fazem da UEFS uma Universidade socialmente referenciada.
Com esse testemunho não queremos apenas registrar a vontade de expressar no texto o que sentimos e queremos compartilhar mas se trata, sobretudo, de projetar esse sentir no contexto aprovado pela comunidade acadêmica em  2007,  com um Programa de mudanças que sinalizava para um “rumo novo” capaz de “superar concepções e práticas”.   Se antes rompemos a cerca farpada que teimava em se interpor entre o imaginário do Curso de Direito e a materialização de sua proposta, agora içamos bandeiras que levamos à Reitoria para que possamos construir, juntos, o Curso que insiste em organizar seu pensamento e transformar a sociedade à luz da crítica teórica alinhada às práticas sociais.
Por isso que conclamamos o Curso de Direto à reflexão sobre os paradigmas da Proposta Mais UEFS e seu compromisso de reafirmar os princípios de sua concepção de Universidade que pretende consolidar através dos Eixos Programáticos apresentados à comunidade acadêmica para aprovação nas eleições para Reitor e Vice Reitor, que ocorrerá nos dias 4, 5 e 6 de abril próximos.
Votar na Chapa Mais UEFS, em especial para nós, do Curso de Direito, é uma atitude para além do gesto democrático de depositar um voto na urna. Significa, antes,  a escolha política consciente e conseqüente por um candidato a Reitor, Prof.  Zé Carlos e um candidato a Vice-Reitor, Prof. Genival que, se distanciando do  continuísmo autoritário, representam a possibilidade histórica de dar continuidade a um processo identificado por um modelo democrático, dialógico, participativo e plural de Universidade pública.
Marilia Lomanto Veloso
Professora e Coordenadora do Curso de Direito da UEFS

O Ministério Público, o MST e a dignidade da pessoa humana: Qual dignidade? Qual "Pessoa humana"

A Constituição de 1988 prescreve, no TÍTULO I,
Dos Princípios Fundamentais, Art. 1º que a “R
epública Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, dentre outros itens: II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana. No Art. 3º do mesmo Título I afirma que “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda no mesmo Título, o Art. 4º preceitua que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos, para lembrar incisos pertinentes a estes comentários.
Vale isso dizer que a Constituição de 1988, na perspectiva de seus princípios, elegeu categorias de indiscutível realce político para colocar o Brasil no cenário dos povos  civilizados como um país fecundado por ideais democráticos e práticas direcionadas à consolidação desses traçados utópicos. Nessa ótica constitucional de cidadania com liberdade, justiça social, solidariedade, promoção de igualdade, extirpação da pobreza, proeminência dos direitos humanos, parece induvidoso que respeito à pessoa humana e sua dignidade tem o significado, na mais tímida interpretação, de conferir especial deferência ao “ser” humano ontologicamente considerado, independentemente da condição social, econômica, ideológica, orientação sexual, religiosa, etnia ou qualquer outra categoria que distinga esse “ser”, dotado de inteligência, espiritualidade, divindade, sujeito histórico e capaz de transformar a sociedade e a própria história através das várias estratégias de resistência e de intervenção na realidade, em busca da edificação de um outro mundo onde todos e todas possam usufruir do bem comum e de uma sociedade equilibrada e justa.  
Uma dessas formas de resistência é a luta coletiva que pode se apresentar tanto por mecanismos dialógicos, a exemplo das audiências com as instituições formais, como nos movimentos de massa identificados pelas marchas e as ocupações. Só assim os excluídos, dentre os quais, os sem-terra, se fazem palpáveis, ocupam os espaços midiáticos sempre prontos a disseminar notícias que não só desqualificam o movimento social como estimulam o confronto entre a sociedade mal informada e os reais desafios  dessa parcela considerável da população no enfrentamento com a opressão das elites patrocinadas pelo aparato repressivo de Estado.
Dentro desse contexto de peleja em busca da cidadania e mais, marcando anualmente o mês do Massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, em 1996, quando dezenove trabalhadores sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar, o MST instituiu o Abril Vermelho, promovendo ocupações com objetivo não só de lembrar o triste episódio que culminou com a perda de tantos companheiros, como também para reafirmar a luta em defesa da reforma agrária como tática do ajuste social tão distante ainda da realidade de milhares de “cidadãos e cidadãs” aqui e no resto do mundo.
Nessa direção também rumaram os três mil integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) da Bahia, ocupando a Secretaria de Agricultura do Estado, no Centro Administrativo. Atento às naturais e inevitáveis demandas das ocupações, o governo, corretamente, buscou intervir nas questões infra-estruturais preventivas de danos e riscos maiores à saúde, à segurança, à vida que podem se instalar nesses ambientes de luta, onde se aglutinam brasileiros e brasileiras vitimizados pela política de exclusão social implantada pelo colonialismo e mantida pelos que apoiam e aplaudem os processos de dominação que teimam em colocar, de um lado, os poderosos, os que contam nos índices econômicos, do outro lado, os reprimidos em suas mais básicas necessidades.  
Desse modo, o governo da Bahia providenciou a instalação de banheiros químicos, chuveiros e toldos para proteger os trabalhadores e trabalhadoras, principalmente as gestantes e crianças que participam das ocupações. A justificativa da Secretaria da Agricultura para tal investimento, cuja verba teve a liberação devidamente aprovada pela Procuradoria Geral do Estado, se afirma no escopo de garantir aos acampados “condições dignas de alimentação e higiene”. Razões de “saúde pública e segurança alimentar” dos acampados também teriam autorizado as despesas, de acordo com o Chefe da Assessoria Geral de Comunicação do Estado.
Nesse sentido, causa estranheza noticia veiculada no Jornal A Tarde On Line, dia 15 de abril de 2011, sobre processo de investigação a ser instaurado pelo Ministério Público da Bahia, através do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepan), para apurar a compra de carne e o patrocínio de infra-estrutura, com dinheiro público, para os integrantes do MST acampados na Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária da Bahia (Seagri). Ao admitir não conhecer “com detalhes as circunstâncias que levaram a secretaria a pagar despesas”, a promotora Eliete Rodrigues, do Gepan, escancara a distância entre o Ministério Público e os Movimentos Sociais, o desconhecimento (ou a indiferença) da instituição quanto às carências, as injustiças, as batalhas que compõem a história dessas bravas organizações de massa. Ao anunciar já ter instaurado procedimento para investigar a situação, conforme noticia a imprensa (A Tarde On Line, 18 de abril) a promotora Rita Tourinho considera que o governo não pode privilegiar apenas um movimento social e que sua função (do governo) deve ser voltada para o “atendimento da coletividade como um todo”.
Espantoso que o Ministério Público adote medidas investigatórias para apurar ações da Secretaria de Agricultura por estar praticando as matrizes fundamentais da Constituição de 1988, garantido aos sem-terra (ou a outro movimento social que em determinado momento esteja pugnando por seus direitos) o exercício da cidadania, o respeito à sua dignidade enquanto pessoa, aos direitos humanos porque homens e mulheres com direito a ter direitos.   
Assombra que o Ministério Público se oponha publicamente ao governo que, por dever de estado, disponibiliza a trabalhadores e trabalhadoras que se movimentam na ação cotidiana por mais justiça social e menos desigualdades, as condições mínimas de sobrevivência na área ocupada por centenas de iguais a nós em humanidade, (porque humanos), exatamente por não terem acesso a direitos pelas vias normais de políticas públicas de saúde, educação, alimentação, lazer. E ainda, principalmente, porque exigem agilidade e eficiência nas ações necessárias à reforma agrária, ali estão e ali têm de permanecer até que suas vozes sejam escutadas e suas justas e legítimas reivindicações, atendidas.
Mais bizarro ainda que o discurso do Ministério Público tenha se ancorado na critica à atuação que entende como meramente pontual do governo, pela Secretaria de Agricultura, quando compra alimentos, monta postos de fornecimento de água, viabiliza  sanitários públicos aos acampados. Ou seja, coloca à disposição dos sem-terra infra-estrutura que onera os cofres públicos para atender às demandas de uma categoria que tanto acumula dignidade, espírito de luta e reconhecimento de si própria, individual e coletivamente, como sujeito histórico pronto a construir um mundo mais justo, como atrai para si, por essa identidade tão singular, a raiva ideológica ocultada em cada atitude de oposição à forma de estar-no-mundo que faz do homem, da mulher, da criança sem-terra um forte, um guerreiro com e para uma sociedade justa, igual e solidária.  
Ora, se apenas a motivação policialesca, legalista e mesquinha de que o dinheiro público foi gasto indevidamente é de fato o que vai fundamentar qualquer procedimento do Ministério Público da Bahia para apurar a conduta do governo no amparo à saúde, à segurança, à vida de trabalhadores e trabalhadoras que ocupam espaços públicos (sem violência) na luta por direitos, algumas reflexões devem antecipar a intervenção institucional, até mesmo para resguardo do papel que a Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério Público, quando, no Art. 127, construiu sua nova identidade, enquanto “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Se é verdade que o Ministério Público tem por função constitucional defender a ordem jurídica, é contraditório e insultuoso o investimento da instituição em mecanismos que alimentem a marginalização dos sem-terra, que possam acirrar a discriminação e o preconceito contra os trabalhadores e trabalhadoras que marcham e acampam em busca de direitos. Medidas que obstruam o governo quando, diante da precariedade de um acampamento, adota ações no sentido de preservar a vida dos acampados, acolhendo a prevalência de direitos que, antes de se destinarem a essa ou àquela categoria, naquele momento histórico são direitos humanos, de homens, mulheres, crianças, idosos, que o estado tem responsabilidade política de amparar e de assegurar respeito à dignidade de cada um e de cada uma dessas pessoas que ali se abarracam.
Nessa linha de raciocínio, se cabe ao MP a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, correto seria que os membros da instituição que presumivelmente desempenham funções em alguma Coordenação de Cidadania, Direitos Humanos, Defesa da Criança e do Adolescente, do Idoso, acorressem de imediato ao local ocupado para exigir do governo providências garantidoras de condições mínimas de higiene, saúde, alimentação, até mesmo por conta da proteção a crianças e adolescentes que acompanham as famílias acampadas, exatamente porque são seus filhos e filhas.
Merece repulsa, portanto, qualquer movimento da instituição contra a conduta, legal, constitucional, humana e, sobretudo, politicamente correta do governo da Bahia, compatibilizada com os paradigmas ético-político-fisosóficos da Carta Política de 1988,  quando, até por medida preventiva, coloca à disposição dos sem-terra acampados equipamentos públicos e por isso a todos pertencentes. A propósito dessa utilização de espaços, serviços públicos estaduais e municipais, por uma população de fato “privilegiada” que faz desses espaços latifúndios ocupados por empresas denominadas Blocos, por ocasião do Carnaval, a título de exemplo, não se escuta qualquer protesto do Ministério Público contra o modelo carnavalesco seletivo que está implantado em Salvador.
E mais uma reflexão emerge desse tema. Se for a moralidade pública o que impulsiona o Ministério Público a investigar os gastos do governo com uma comunidade tão desprovida de poder econômico a exemplo dos sem-terra, a sociedade também tem o direito de questionar e avaliar o espaço-tempo de comprometimento dos membros da instituição com suas nobres e respeitáveis funções. Vale lembrar, quanto a esse fato, que não é insólito nem infreqüente o Currículo de um Promotor de Justiça ostentar, além de sua condição de membro do Ministério Público, a função de magistério não em uma, o que representaria significativa contribuição acadêmica, mas em várias Instituições de Ensino Superior (por vezes em locais de grande distância de suas Comarcas) e em cursos preparatórios para concursos.
Como distribuem o tempo e o espaço entre os labores das Promotorias e as atividades pedagógicas dentro e fora das salas de aulas é um  debate que precisa vir a público e passar pelo crivo do controle social.  Essa vigilância saudável, de fato, seria então pensar a moralidade pública a partir de perspectiva mais ampla e horizontal, evitando, desse modo, a odiosa e imprudente verticalização das intervenções, tanto mais compulsivas e rigorosas quanto menos poder político e social retém a categoria investigada.
Por fim, os que militamos nas trincheiras dos direitos humanos e que acreditamos na luta coletiva do povo organizado para construir uma sociedade justa, igual e solidária, esperamos que o Ministério Público, ao se conscientizar de sua função política de defesa do regime democrático, consolide uma relação dialógica com os Movimentos Sociais, enquanto representações vivas dessa sociedade que a Constituição de 1988 proclama e  deve ser efetivamente constituída.

Marilia Lomanto Veloso
Mestre e Doutora em Direito Penal PUC/SP
Coordenadora do Curso de Direito da UEFS
Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos
Associada da AATR
Ex-Promotora de Justiça do Estado da Bahia

A Mulher da Lei e a Mulher Bandida: que bela homenagem para o Dia da Mulher!

Causa assombro, indignação e vergonha a manchete da Tribuna da Bahia, no dia oito de março de 2008, sob o título “Duas faces da mulher: Mulher da lei, mulher bandida”. Além de preconceituosa, grosseira, estigmatizante e de induvidoso mau gosto, a manchete expressa, nitidamente, a afirmação do Estado classista e policial do Movimento de Lei e Ordem que comanda o pensamento das elites no país, dentre as quais se destaca a mídia.
“Bonita, charmosa, atraente e poderosa” é a qualificação da Delegada Patrícia Nuno. De acordo com a matéria, era desejo da homenageada ser modelo, profissão substituída com sucesso pela função que desempenha na segurança pública. 

O perfil da mulher branca, de classe privilegiada e nível superior é estampado por quase toda a folha do periódico em tamanho proporcional à sua categoria de pessoa “do bem”, de heroína, com possibilidade social e econômica de conciliar os diversos papéis que exerce na sociedade capitalista que ajuda a proteger como reconhecida Delegada de Polícia.

Outra, no entanto, é a identidade atribuída pela matéria a Priscila Alves, a “Mulher bandida”. Pessoa “do mal”, pobre, negra, sem charme e sem poder, a ante heroína é colocada exatamente do tamanho e no lugar que ocupa na sociedade excludente onde tenta sobreviver: no “patamar de baixo” da matéria, em dimensão menor, flagrantemente prostrada na sua condição de mulher e ferida na sua dignidade e condição de sujeito social com direitos, dentre os quais o de ser respeitada como pessoa. Priscila é o retrato de olhar tristonho por trás da valise e do saco plástico preto estrategicamente colocados para sugerir a traficância ilícita. Sua postura desajeitada parece negar o discurso da sorridente “top model do crime” alardeado pelo jornal.

A matéria, infeliz na manchete e execrável na abordagem, retrata fielmente a seletividade do sistema punitivo, que coloca, de um lado, os que têm saber e poder, os dominantes, e do outro lado, os dominados, que têm subtraídas todas as possibilidades de inclusão social e, mais grave, os que são destituídos até mesmo de seu direito à auto-estima. No caso de Priscila, merece repúdio a ausência absoluta de prurido ético na manchete e no violento contraste social das duas protagonistas que a matéria faz questão de exibir.  Critique-se, ademais, a linguagem do texto nas referências a Priscila, traduzindo a etiqueta de mulher de conduta desviada, que viola dispositivos penais e merece, por isso, a resposta que o estado reserva para os que ousam afrontar seus comandos e romper com as regras que dita para o convívio social.

A Delegada Patrícia Nuno, exaltada por sua história de mulher vitoriosa e esteticamente perfeita, certamente está feliz e festeja com razão o reconhecimento público de sua trajetória pessoal e profissional.

E Priscila? Que bela homenagem a mídia lhe prestou no Dia da Mulher! Sua história pessoal foi esquartejada e distribuída em pedaços reconstituídos na pequena foto ao final da página que discorre sobre a Mulher da Lei e a Mulher bandida. O que nunca mais será devolvido a Priscila é o respeito com que deveria ser tratada no momento em que sua imagem e sua história foram confrontadas com a de outra mulher. O que deve ser trazido à discussão e repudiado de forma veemente é o ato de violência que foi praticado contra Priscila não só pela forma como foi abordada a matéria como também pelo rótulo de mulher fora da lei com que foi apresentada à opinião pública.
A você, Priscila e a todas as mulheres que você representa nessa patética manchete, mulheres que fazem parte da clientela preferencial do sistema; a você que provavelmente foi expropriada de suas possibilidades de  ser parte do mundo dos que se apropriam do saber para oprimir; que deve ser uma das herdeiras históricas do colonialismo perverso que expulsou o homem dos campos onde flertava cotidianamente com o sonho de ter seu pedaço de chão para viver feliz; você, que não deve ter tido as oportunidades que permitem escolhas diferentes do caminho que  a truculência da matéria fez questão de escancarar; a você, no Dia da Mulher, tão reduzida, maculada e profundamente  ferida na sua essência humana, as minhas desculpas, o meu constrangimento e a minha tristeza.

Que nunca mais você permita essa exposição midiática infame para satisfazer a concupiscência ideológica dos que se pensam donos dos corpos e da alma dos que não têm senão a si próprios para defender sua condição humana.

Artigo escrito em 10/03/2008
Marilia Lomanto Veloso
Doutora em Direito Penal pela PUC/SP
Professora da UEFS
Membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia
Presidente do JusPopuli Escritório de Direitos Humanos